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TEXTOS 

A fala e o discurso enquanto construção da realidade nas poéticas da vida

 

José Eduardo Ferreira Santos 
Doutor em Saúde Pública, Salvador, Bahia

   

 

Quando alguém fala de sua trajetória, de sua vida, algo está sendo recriado, reordenado e construído naquele instante. Isso me lembra uma pessoa que disse uma vez que o uso da razão era uma forma pedagógica de mudança nos adultos. Então, surge a questão: no momento da narrativa a pessoa se coloca diante de mim, pesquisador, com uma capacidade de pensar e repensar, chegando a conclusões práticas, sobre aspectos que ainda não chegou a enfrentar. Então, a fala tem uma função, que, aliada ao pensamento, faz com que a pessoa se restaure, se recoloque em um lugar privilegiado, o de sujeito de sua história. Falar de si e das coisas (presente, passado e futuro), faz com que o sujeito esteja ativo, mesmo que diante de qualquer situação opressiva, então, quando o jovem elabora suas narrativas ele está sendo mais protagonista e mais dinâmico, porque tem que apreender naquele instante a vida, aqui entendida enquanto esfera do visível e perceptível, do aqui e agora das relações, mas também do tempo progressivo e perspectivo. E aqui é uma novidade da psicologia, que me parece derivar daquilo que você sublinhou como encontro e eu enfrentei a partir da antropologia, pois em ambos há um estranhamento e depois há o estabelecimento de pontes de ligação entre discursos, dada a abertura de ambos. 

Nesse sentido, a narrativa se apresenta como uma esfera cuja dimensão ultrapassa o pragmatismo e transcende para novas formas de antecipação e estruturação da realidade.

Poderíamos entender o discurso não somente como uma mera descrição da realidade, mas como uma construção ou uma invenção pessoal, cujo valor está na ordenação de uma fragmentação que cotidianamente a pessoa experiência, mas só pode organizar no momento em que se debruça sobre a narrativa, coisa que o sujeito pode fazer internamente, em momentos de reflexão ou diante da presença de um outro, cujos olhos, ouvidos e corpo estão atentamente voltados para a atividade da escuta, que favorece o desabrochar da narrativa como uma construção que tem significado para quem ouve e para quem fala.

A narrativa gera uma novidade, tal qual uma invenção, que reordena o sentido que a pessoa confere à sua história, de modo que essa história possa, quiçá, ser perpetuada e partilhada, pois essa é uma das características da narrativa: ela faz-se, constrói-se, à medida que um outro está disposto a compartilhá-la. Perceber a narrativa como uma invenção, ou uma criação, não quer dizer que a desmereçamos, mas, pelo contrário, é aí que se revela a subjetividade do sujeito, que entre sínteses chega à sua subjetividade que pode ser compartilhada.

A narrativa ou o discurso não são tão somente descrições da realidade porque colocam o indivíduo sempre num patamar criador, reflexivo e atuante diante da mera descrição ou vivência do cotidiano.

Aqui parece a descrição da poesia, não somente na forma, mas naquela que se revela em cada obra artística diante da qual nos debruçamos: texto, pesquisa, livros, poesia, música, fotos, quadros, enfim, uma dimensão de obras que fazem com que nos olhemos de forma diferente para algo que pensávamos saber, mas que graças ao artista somos lançados para outras dimensões mais amplas e profundas da vida, gerando em nós um gosto pelo viver ou uma tristeza, que é essa nostalgia de algo infinito que nos complete eternamente. E a beleza é um componente que nós pouco conseguimos enxergar na narrativa, mas está presente, porque cada história recriada, recontada é a chave de abertura para essa possibilidade de beleza que cada história de vida nos apresenta, com todos os seus dramas e significados.  Será que algum pesquisador já se deu conta que quando entrevista uma pessoa ela, a pessoa, está colocando ali toda a sua riqueza e a beleza da sua sensibilidade, assim como é, e, por isso mesma, é uma esfera da subjetividade que deve ser cuidada e jamais desprezada?

Quando entrevisto alguns jovens – e isso fica evidente – muitas vezes a descrição do real é substituída por uma imagem que ele carrega e que tem o seu peso de veracidade, porque ninguém é obrigado a viver ordinariamente, sempre, dentro do cotidiano, emerge uma novidade, algo que torna a sua existência singular e nem mesmo as dores ou as dificuldades e limites pode abafar essa certeza que é elaborada pelo sujeito, que, em todo o instante é protagonista dos seus movimentos.

Tenho a impressão de que quando um jovem ou qualquer pessoa que produz uma narrativa quando ela consegue ultrapassar a mera descrição do real e do cotidiano, sem emergir a novidade da sua individualidade ela está presa a esferas primárias do pensamento; quando, pelo contrário, consegue refletir sobre o seu cotidiano, ultrapassando a mera descrição, a pessoa utiliza formas mais elaboradas de pensamento e reflexão e utiliza formas mais complexas de pensamento, chegando a essas coisas que tenho chamado de síntese, mas que podem ser identificadas como os momentos de tomada de consciência da complexidade do que é o instante e do que é uma vida, e aqui pode nascer a motivação, a comoção, a percepção dos limites, da grandeza da existência etc. E eis que surge uma pessoa nova, uma subjetividade mais aguçada, ou seja, uma pessoa com uma percepção cuja dimensão poética aparece em sua vida como possibilidades de a todo momento fazer emergir algo significativo do cotidiano ordinário e concreto.

 

 O estudo de caso e as poéticas da vida

 O estudo de caso proporciona o reconhecimento de momentos de criação e novidade, constantemente. Mas essa poética é tangível na fala, como podemos, enquanto pesquisadores, descobrir, mas muitas vezes são movimentos diante dos quais as pessoas se dão conta e muitas vezes não podem expressar a posteriori. Imagino a comoção de uma mãe que fala do filho morto ou de uma mãe que chora ao falar daquele filho que ela não consegue controlar. Nesses momentos aparece a intangibilidade, a incomensurabilidade de algo que não podemos controlar, como os filhos, ou mesmo a vida. A incomensurabilidade desses movimentos é uma questão em aberto, que nem eu mesmo consigo enfrentar[1]. Quantos se dão conta cotidianamente dela, se não fosse o momento da pesquisa enquanto abordamos tal questão. Quando falávamos na reunião de que quando uma mãe fala de um filho morto ela está fazendo com que ele continue vivo em sua memória, é isso que estou tentando entender, porque, na memória, cada vez que o evento ou uma presença aparece, ela ganha novos significados afetivos, emocionais, cognitivos e mesmo a sua presença está cada vez mais forte, colocando em parêntesis a ausência. Nesse sentido a memória faz com que uma ausência se torne presença e reaconteça. Então, a memória, aliada à narrativa são, também, momentos de criação, que dão força à pessoa para enfrentar as situações, por exemplo, de dificuldade e de perda.

Diante de quem essas pessoas poderiam expressar tais demandas, não fosse a presença de alguém que se dispõe a escutá-las sem críticas ou preconceitos e demonstrassem uma abertura ao que elas querem dizer?  Então, as narrativas podem ser momentos privilegiados quando colocam essas questões diante da pessoa, cuja resposta é uma novidade que existia cotidianamente e a pessoa nem se dava conta, mas, por conta de uma presença que a encontra (no nosso caso, de pesquisadores), emerge uma novidade que une tempos fragmentados em sínteses de uma vida que avança na descoberta da sua singularidade e subjetividade.

Aqui as poéticas da vida aparecem. Momentos de criação, irrupções de novidade, chaves de entendimento, estalos (como o famoso estalo do padre Antonio Vieira, segundo a tradição) são momentos em que tudo parece fazer sentido, por causa do encontro com uma presença externa que recoloca no lugar o turbilhão daquilo que é qualquer subjetividade, porque a subjetividade é uma caixa bagunçada, que diante do evento externo, se introjeta (ou internaliza) e se reorganiza, gerando uma síntese que explica o tempo em todas as suas dimensões.

 

 A fala organiza o sentir (sentido)

 A psicologia foi a ciência que entendeu que a fala organiza o sentido, que rearruma a pessoa e lhe dá significados que antes não existiam e agora existem. A fala tem uma função terapêutica, catártica (estou entrando na tua linguagem), mas a fala torna real, faz existir uma realidade que jazia e agora submerge. A narrativa tem essas e outras funções, por isso, é através da narrativa que emerge a novidade, a criação, a poética da vida. Talvez a arte possa significar o mesmo, pois quem pinta um quadro, compõe uma canção, escreve um livro, faz um poema esteja lidando naquele instante com essa capacidade de fazer emergir uma novidade, mas como o nosso campo é o da pesquisa é na fala, principalmente na recorrência da fala que a pessoa adquira novos sentidos para agir. A fala faz com que  transcendamos o  instante e nos coloquemos em comunhão com aquilo que chamamos de humanidade. E quando falamos de humanidade não estamos separando nem ricos ou pobres, nem inteligentes ou menos inteligentes, estamos falando de sujeitos, então a fala nos coloca, todos, num mesmo patamar, quer seja de dignidade, quer seja de humanidade.

E não nos espantemos, pois na análise de um discurso, por que sejam as pessoas definidas pela condição social, ali vai aparecer o sujeito, um homem ou uma mulher em relação com a humanidade, ou seja, portadores de subjetividades. A fala confere sentido – e beleza – a qualquer pessoa, e este é um dado ao qual devemos nos ater.  A narrativa confere um sentido novo às coisas, à existência cotidiana, e este talvez tenha sido o fato que me chamou a atenção quando os jovens falam dos seus projetos de vida, pois ali, naquele momento o retrospecto junta-se ao presente e se lança para o futuro, gerando uma síntese de dimensões impensadas pela psicologia: alguém cresce enquanto fala, alguém muda enquanto produz uma narrativa.

 

O olhar, uma característica da pesquisa

Analisar uma narrativa, ou um estudo de caso tem uma característica que aprendi: o olhar. Ela contempla cada aspecto, pondera sobre as possibilidades e isso confere uma possibilidade de abertura e estranhamento/encontro diante da pessoa. Não há respostas prontas, há possibilidades e delineamentos, e isso sempre me espantou. Uma pessoa não é um caso e pronto. Uma pessoa é uma história e um mistério. Algo que está por revelar-se.

Mas, qual é o mistério do olhar diante da trajetória? É que ele não antecipa, nem resolve, mas capta nuanças que a vida corriqueira não alcança. É um olhar poético sobre a realidade (poético sem pieguismo, mas esperando que a novidade emirja como quiser).  Esse olhar poético tem paciência: espera, se defronta, confronta, pergunta e na narrativa aparece o sentido. A psicologia tem a aprender com isso, porque não confere, de pronto, definições, mas espera que elas apareçam e elas aparecem. É preciso paciência e encontro. Paciência, na esfera do tempo. Encontro, na esfera de quem se apresenta a mim, pesquisador. O olhar poético debruça-se sobre a subjetividade com respeito a ela (a tua ética da poética) e esse olhar tem a característica que alguns pesquisadores não têm por causa da pressa. O olhar espera, alcança, abraça porque olha, demora-se sobre o sujeito.

A psicologia precisa aprender a olhar, a se debruçar sobre a subjetividade, como quem espera o amanhecer. Está tudo escuro, mas ela vai aparecer. Quem tem pressa vai dormir e não enxerga a beleza do amanhecer. Só o olhar debruça-se sobre as novidades e espanta-se com elas. Quem já possui as respostas prontas só está pronto para enquadrar, analisar e descrever. Quem olha, encontra porque fez um movimento de encontro com a grande diferença que é o outro.

Desde os primeiros dias de vida, é através do olhar que apreendemos algumas habilidades fundamentais para existir. Sem o olhar, não podemos nos dar conta do que é uma pessoa, pois a narrativa não é feita de falas, mas também do silêncio, que é uma linguagem poderosa. Quando na narrativa emerge o silêncio, o olhar e a interação são as forças que também podem surpreender essa novidade, essa poética da vida.

O olhar pode ser orientado nas mais diversas áreas do saber, mas acredito que a distinção básica está em duas delas: a antropologia e a psicologia, pois me parece que essas duas ciências são intimamente ligadas à questão do olhar, embora em condições diferentes, dada a existência de campos e propósitos diversos.

O olhar antropológico tem uma dimensão contextual, ligada ao campo, buscando envolver-se com a realidade para apreender mais, de modo que para conhecer um aspecto necessita abarcar uma totalidade.

A união dessas duas formas de olhar pode gerar uma nova via de conhecimento que coincide com a dimensão mais ampla da pessoa. Pode ser que com temos começado a descobrir essa nova via da psicologia que não se interessa em restringir, mas de ampliar e aprofundar o conhecimento sobre os processos humanos de uma forma mais dinâmica, sem ter medo das incomensurabilidades que cada pessoa apresenta. Mas essa abertura não é fácil, pois parecemos estar apegados a algumas “tábuas de salvação” teóricas, às quais devemos ultrapassar.

 

“Foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar”

 

 Psicologia e Antropologia juntas no olhar para um fenômeno como o estudo de casos pode esbarrar na percepção de que ninguém é o tempo todo. Enquanto apreendemos uma história de vida ou um estudo de caso estamos como que paralisando aquele rio de imagens e experiência que continua, mostrando que há uma dinâmica inapreensível em cada estudo de caso. Ou seja, após a sistematização daquela vida em palavras, imagens e símbolos, a pessoa continua a criar palavras, imagens e símbolos de uma forma mais intensa após a sistematização primeira e isso a orienta para um futuro diferente, mais consciente, se assim podemos chamar.

A história humana não pára e não param também as histórias que vão sendo tecidas cotidianamente por cada pessoa. Por isso o estudo das poéticas da vida esbarra neste verso do Paulinho da Viola: “foi um rio que passou em minha vida”, como algo contínuo e enigmático, contínuo e novo, constantemente pleno de novidade.


 

 

[1] Comigo isso acontece em alguns momentos e me deixa muito comovido, quando, por exemplo, vejo o sofrimento de alguém, a dor por algo ruim que me fizeram, a beleza de alguém a ternura ou amor que sinto por algumas pessoas etc. diante de algo que não posso resolver, ou quando percebo que a vida  é maior do que eu, ou das pessoas que não posso cuidar, ou daquelas diante das quais nada posso fazer, quando faço algo errado, quando leio algum texto que me coloca em aberto, quando me apaixono por uma canção e a escuto até não mais poder, enfim, nesses momentos em que percebo a minha incompletude. Muitas vezes entendi esse aspecto da incomensurabilidade diante de pais e mães de adolescentes que me diziam que parecia não reconhecer o filho que havia saído de seu ventre e hoje tem um comportamento arredio. Para as mães, particularmente, esse é um momento dramático, porque ela se dá conta de uma limitação infinita e conviver com essa limitação é algo que as coloca também em aberto, utilizando todas as tentativas diante de liberdade de outro que a recusa. Note que esse movimento acontece em todos os instantes da vida, dos mais banais, aos mais cheios de densidade, o que apresenta que essa configuração entre o banal e o extraordinário pode não existir, mas que se faz presente a partir, também da subjetividade da pessoa, pois a sua sensibilidade foi construída ao longo da vida e a atenção a estes aspectos depende de como a pessoa se relaciona com o cotidiano e com a dimensão misteriosa do que é a existência. Talvez também diante de uma morte essas percepção aconteça, mas aí a percepção da falta e do mistério é mais ampla e eu não me atrevo a adentrar esses meandros, porque me coloca em suspenso.

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